Insustentavel leveza do ser

segunda-feira, novembro 28, 2005

A gravata e a civilização

Sem grandes acontecimentos, fim de semana poderia ser mais bem preenchido... E mais um fim de ano está aí.. Balanços e saldos - despir a alma, tentar fazer isso sem medo.. Raivas ?! - Sim ! Desencontros - Tb ! Alegrias e Prazeres - Sim ! Conflitos - Oh yes ! O tempo passa rápido, a vida segue seu fluxo, estando nós participando dele ou não, estando nos intervalos entre nossas dores e alegrias.. Quero tirar a "gravata" que me prende e me enforca tb..

A gravata e a civilização

EM 1915, FERNANDO PESSOA incorporou seu heterônimo Álvaro de Campos e escreveu uma carta a Walt Whitman chamada ?Saudação?. Em meio ao texto, entusiasmado com as próprias palavras, pediu licença ao destinatário para abrir o colarinho e tirar a gravata antes de continuar: ?Não se pode ter muita energia com a civilização à roda do pescoço?. Livre da gravata, seguiu escrevendo com o vigor pelo qual que estava tomado.
Considero a gravata um objeto de fetiche. Prefiro os que usam camiseta, mas um certo dia estes rapazes casuais surgem de terno completo e eis que se avista uma nova possibilidade de homem. Divagações. Não me dê a menor atenção, pois não é este o assunto da crônica.
O que eu quero falar é sobre esta história de civilização à roda do pescoço, que serve como metáfora para gravatas e para tantas coisas mais. A civilidade nos torna bastante apresentáveis e integrados ao nosso meio, então ela está sempre nos acompanhando, seja no vocabulário que usamos, seja nos nossos modos ou na nossa capacidade de engolir sapos e relevar grosserias: somos polidos, não resta dúvida. É uma excepcional qualidade. Mas também é inegável que isso nos rouba alguma energia em horas vitais.
Ser passional, vigoroso, arrebatador, acalorado, nada disso é possível quando se tem a civilização ao redor do pescoço, física ou metaforicamente falando. Em horas extremas, exige-se nudez ? física ou metafórica, de novo. É preciso o mínimo de impedimento para gestos ousados, o mínimo de autocensura para falar o que se pensa, o mínimo de controle para demonstrar o que se sente. Há sempre um momento na vida ? quisera fossem muitos ? em que é preciso despir-se da nossa pele de cordeiro e deixar transparecer a nossa alma do jeito que ela é, e às vezes nem sabemos ao certo como ela é, tão pouco nos enxergamos por dentro. A adestração faz parte da nossa educação, mas como nos descaracteriza.
Às vezes é preciso dar um dia de folga à nossa civilidade. Não há como não arrancar a gravata e jogar longe o salto alto na hora de fazer declarações de amor, confessar pecados grandes, sair em busca de um novo caminho pra vida, escrever poemas com a dor da perda ainda latejando. Não há como não tirar o batom na hora do beijo, soltar os cabelos na hora do sexo, arregaçar as mangas na hora de um abraço forte. Durante emoções estupendas, nada pode nos apertar, nos constranger, nos segurar. São ocasiões raras em que não se deve ter compromisso algum com a vaidade. Aliás, somos insuportavelmente belos ao nos desamarrarmos, ao nos livrarmos de nossos pudores, ao arrancar os óculos do rosto para deixar que vejam nossos olhos, sejam eles claros, escuros ou vermelhos ? todos já tivemos os olhos vermelhos.
Fernando Pessoa não conseguia continuar escrevendo o que escrevia para Walt Whitman estando de gravata. Sentia que perdia sua força justo quando esta lhe era mais necessária. Suas palavras exigiam liberdade para continuarem significativas, era imperioso ter mais fôlego, talvez até um pouco de selvageria ? e ele não pensou duas vezes: adeus, gravata. Era 1915, quando homens sem gravata não eram nem cumprimentados na rua. Mas em nome da sua arte e das exigências da sua alma, ele pensou: dane-se. Estava certo. Para a alma vazar, o corpo tem que abrir espaço.
E-mail: martha.medeiros@oglobo.com.br

segunda-feira, novembro 07, 2005

A gente se acostuma. Mas não devia

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E porque não tem outra vista,logo se acostuma a NÃO olhar p/ fora. E, porque não olha p/ fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece a ar e esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã, sobressaltado porque está na hora. A tomar café correndo porque está atrasada. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder tempo de viagem.A comer sanduíches porque não dá p/ almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números p/ os mortos. E aceitamos os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E não aceitando as negociações de paz, aceita ler todo o dia de guerra, dos números e da longa duração.A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir p/ as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado, quando precisava tanto ser visto.A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios, a ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e necessita. E a lutar por ganhar menos do que precisa. E a fazer fila p/ pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro p/ ter com que pagar nas filas em que se cobra.A gente se acostuma à poluição e à luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da àgua potável, à contaminação da àgua do mar e a lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinhos, a não ter galos na madrugada a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta do pé e a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais, p/ não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só o pé e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre o sono atrasado.A gente se acostuma p/ não se ralar na aspereza e preservar a pele. Se acostuma p/ evitar feridas, sangramentos, p/ esquivar-se da faca e da baioneta, p/ poupar o peito. A gente se acostuma p/ poupar a vida, que aos poucos se gasta, e, que de tanto se acostumar, se perde de si mesma.

-Marina Colassanti.-