Insustentavel leveza do ser

quarta-feira, novembro 29, 2006

Abaixo à ditadura..!

Foi preciso acontecer 2 episódios trágicos para vir à tona a discussão sobre os distúrbios alimentares que provocam sofrimento, angústia e morte para muitas mulheres que tentam se encaixar num padrão rígido e quase inatingível de beleza. Sempre achei opressora essa idéia de se impor um padrão a ser atingido , sem questionamentos, sem liberdade , sem considerar a diversidade e as particularidades que existem. Bom, espero que a gente consiga refletir de verdade sobre tudo isso e enxergar que a beleza é muito mais do que um conceito rígido, aprisionado e triste. SEgue abaix um texto da Cora Ronai (O Globo) que vai de encontro à tudo isso..


A morte de duas jovens por anorexia, numa única semana, deveria ter acendido uma
luz vermelha geral que, francamente, já era para estar acesa há décadas; mas
salvo um artigo aqui e outro ali, mais as protocolares declarações de agências
de modelos e organizadores de desfiles de modas, nada aconteceu - nem podia
acontecer, posto que a indústria da moda não é a única responsável pela
monstruosa deformação estética dos nossos sentidos e da nossa sensibilidade.
Todos aqueles que, de alguma maneira, ajudam a criar os padrões de "beleza"
entre eles a publicidade, a indústria do entretenimento, as revistas e os
jornais - têm sua parcela de culpa e, a menos que o mundo passe por uma
verdadeira revolução cultural, o que acho altamente improvável, milhões de
meninas e de mulheres continuarão a se martirizar em nome de uma "beleza"
inatingível. A morte é apenas a ponta mais visível de um iceberg de infelicidade
crônica e de um massacre sem precedentes da auto-estima feminina.
Do alto desses tempos supostamente "civilizados", olhamos com desdém para as
torturas a que eram, ou ainda são, submetidas as mulheres em sociedades antigas
e/ou "primitivas": os espartilhos vitorianos e os pés deformados da China foram
apropriadamente lembrados há dias, aqui mesmo no GLOBO, na página sete, por
Leonardo Drummond ? que não se esqueceu de contrapô-los às atuais costelas
cirurgicamente removidas, que tanta gente considera uma forma "normal" de afinar
a silhueta.
A isso se poderia acrescentar um vasto catálogo de horrores contemporâneos, das
argolas que continuam a esticar os pescoços das mulheres de Burma às pernas
serradas e espichadas das chinesas que, com isso, ficam mais altas e
"atraentes", tanto para os homens quanto para o mercado de trabalho.
É fácil percebermos que há algo errado em pessoas de resto normais, e
eventualmente bonitas, que se submetem a cirurgias em que seus ossos são
removidos ou serrados por razões puramente estéticas; chega a ser difícil
acreditar que isso aconteça aqui, agora, num mundo cientificamente esclarecido.
Mas a maioria das dietas a que se submetem tantas mulheres insatisfeitas com
seus corpos e os remédios que tomam para se manterem magras não são menos
prejudiciais do que os procedimentos cirúrgicos que nos horrorizam; nem é menos
profundo o grau de infelicidade que as move a comportamentos tão destrutivos.
Muito pior do que o que se vê no corpo é o que vai pela alma, e que não se vê.
Esta trágica infelicidade não se restringe mais a umas poucas pessoas, mas se
espalha, como praga, por toda a sociedade. Num mundo cada vez mais obeso, a
imagem da beleza é, paradoxalmente, cada vez mais esquálida.
A própria idéia do que é beleza, aliás, anda tão inequivocamente atrelada a pele
e ossos que já não se concebe beleza acima do peso "ideal". Isso seria
compreensível, até certo ponto, em termos de saúde ? se este magro "bonito" não
estivesse muito, mas muito além do que a imensa maioria das mulheres pode
alcançar naturalmente. E não fosse doentio.
Reparem: é tão perversa a estética contemporânea que, se uma moça de traços
bonitos tiver 1,80m de altura e pesar 50 quilos, pode dar sorte e acabar sendo
fotografada pelo Mario Testino para a capa da "Vogue"; mas a feiosinha pobre,
coitada, com a mesma altura e o mesmo peso, vira, quando muito, foto do
Sebastião Salgado - e periga ir para a capa da "Time", em ensaio sobre a fome e
a miséria.
Ambas serão igualmente convincentes.
Desde que o mundo é mundo, nós, mulheres, fomos vítimas da ditadura da beleza.
Era de se esperar que, com os movimentos sociais e a independência que
adquirimos ao longo do século passado, estivéssemos livres para, finalmente!,
conviver em paz com nossos corpos; mas, ao contrário, nunca estivemos expostas a
tal bombardeio de imagens artificiais e tipos físicos inexistentes. A verdade é
que nunca houve época em que o ideal de beleza estivesse tão afastado da
realidade e dos padrões locais. No Brasil, por exemplo, onde as louras são
minoria, gerações de menininhas moreninhas e baixinhas cresceram tendo como
exemplo máximo de beleza e sucesso uma loura longilínea cercada de sublourinhas
igualmente longilíneas. Se isso não é um passaporte carimbado para a frustração,
não sei o que é.
Um dia eu estava atravessando uma rua em Barcelona quando um outdoor me chamou a
atenção. Era uma propaganda de roupas esportivas e, nele, uma mulher de top e
shortinho fazia uma flexão para o lado. Levei um tempo até descobrir o que havia
de "errado": a moça da foto, como qualquer pessoa no mundo, tinha dobrinhas na
pele no lado para o qual se curvava. Aqui, as dobrinhas teriam sido
imediatamente apagadas no Photoshop - e as mulheres que vissem o cartaz, como
vêem tantos outros cartazes o tempo todo, ficariam arrasadas por serem... ora,
humanas.
Que fazer? Não olhem para mim, não tenho a resposta; só tenho perguntas, e a
perplexidade de ter gasto tanto tempo preocupada com a aparência. Afinal, sou
uma baixinha com peso de gente que precisou viver mais de 50 anos para, enfim,
se aceitar como é.